terça-feira, 21 de março de 2017

Uma luz em meu ouvido, 3

Wittgenstein confiava na sua formação, consolidada especialmente por conta de seu ouvido bem treinado. Depois da I Guerra Mundial, ao retornar do campo de prisioneiros no qual ficou na Itália, ele decide dar aulas para crianças no interior da Áustria, fazendo um curso de magistério de um ano de duração. A experiência, contudo, não sai como esperado: Wittgenstein não encontra a grande iluminação espiritual que buscava, só frustração com as capacidades intelectuais limitadas das crianças e de seus pais. 

A ironia é que no auge da raiva e da frustração Wittgenstein atacava justamente as orelhas dos alunos, esse privilegiado receptáculo que foi tão fundamental para ele. O professor tinha o hábito de dar tapas nas orelhas dos alunos que não sabiam responder suas perguntas (Ohrfeige é o termo em alemão citado por Ray Monk), além de puxar os cabelos.

No mesmo ano em que Wittgenstein se prepara para o magistério, 1919, Freud publica o ensaio "Ein Kind wird geschlagen (Beitrag zur Kenntnis der Entstehung sexueller Perversionen)", ou seja, na tradução de Paulo César de Souza: "Batem numa criança (contribuição ao conhecimento da gênese das perversões sexuais". O tradutor acrescenta em nota uma explicação acerca do título:

A expressão original se acha na voz passiva, de modo que sua tradução literal seria "uma criança é surrada, espancada", que não adotamos aqui por razões de estilo, por não ficar bem nas frases em que surge no texto (Freud, Obras completas, volume 14 (1917-1920), Cia das Letras, 2010, p. 294).

É digno de nota que Freud indique que o primeiro conjunto de cenas de espancamento, conjunto que encobre algo que pertence à primeira infância, diz respeito precisamente ao contexto escolar dos primeiros anos, aquele no qual Wittgenstein atuava. Escreve Freud:

Enfim se constata que as primeiras fantasias dessa espécie foram cultivadas bem cedo, antes da idade escolar. Na escola, quando a criança viu o professor bater em outras crianças, tal vivência despertou novamente as fantasias, se estavam adormecidas; fortaleceu-as, se ainda estavam presentes, e modificou notavelmente o seu conteúdo. A partir de então, "muitas crianças" foram surradas. A influência da escola foi tão nítida que os pacientes em questão eram inicialmente tentados a ligar as fantasias de surra apenas a tais impressões da época escola, após os seis anos de idade. Mas não era possível sustentar isso; elas já existiam antes. (p. 295).


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