sábado, 15 de outubro de 2016

Comunismo, rosto de areia

1) Como mencionado alhures, Susan Sontag retorna, no segundo volume dos Diários, ao problema do comunismo, do pensamento de esquerda, da influência soviética e a influência desse conjunto de questões sobre os autores/obras de sua preferência (especialmente Sartre, Barthes, Canetti, Benjamin, Brecht). Em uma entrada de 1980, sem data específica, Sontag escreve sobre Canetti: Canetti é o escritor que nega os últimos 150 anos de pensamento - e também nega a história - o protótipo do intelectual europeu da velha escola. No interior dessa obra curiosa se encontram - escondidos + expostos - todos os problemas da consciência. (Diários II, 1964-1980, trad. Rubens Figueiredo, Cia das Letras, 2016, p. 565).
2) Essa ideia da negação dos "últimos 150 anos de pensamento" por parte de Canetti é interessante e se liga àquela afirmação já citada de Sontag em cinco de dezembro de 1978: "Canetti ficou livre da tentação da esquerda. Como?". Além disso, a ideia retorna também na última frase desse volume dos diários, de 30 de julho de 1980 - "destacado" é o comentário do editor, e em seguida a frase:
Grande tema o fim da paixão do Ocidente pelo comunismo. Fim de uma paixão de duzentos anos.
3) Existe uma confluência entre os 150 anos de pensamento de Canetti e a paixão de duzentos anos do Ocidente pelo comunismo que permanece em potência. A frase final de Sontag faz pensar na frase final de Foucault em As palavras e as coisas, que busca o diagnóstico de um fim semelhante - morte de Deus, morte do homem, fim da filosofia, etc:
Uma coisa em todo o caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tenha colocado ao saber humano. (...) o homem é aí uma invenção recente. De fato, dentre todas as mutações que afetaram o saber das coisas e de sua ordem, o saber das identidades, das diferenças, dos caracteres, das equivalências, das palavras - em suma, em meio a todos os episódios dessa profunda história do Mesmo - somente um, aquele que começou há um século e meio e que talvez esteja em via de se encerrar, deixou aparecer a figura do homem. (...) O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. (...) se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia.
(Michel Foucault, As palavras e as coisas, trad. Salma Muchail, Martins Fontes, 2007, p. 536).

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