domingo, 24 de janeiro de 2016

Markson, Lowry

David Markson explora portanto o tema da dissolução, da destruição, do fim, não apenas em Wittgenstein's Mistress, de 1988, mas em todos os seus livros posteriores, com ênfase em Vanishing Point, de 2004. O que Markson parece buscar em suas narrativas é um ponto para além do "mundo real", um ponto que torne obsoleto o paradigma do "início, meio e fim". Uma vez dissolvido o mundo real, o que permanece é a tradição (das imagens, dos textos), o arquivo, e é a partir dele que Markson monta suas ficções (com citações, anedotas e dados biográficos de artistas, fatos, informações e inferências entrecruzadas, sobrepostas).   
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Antes disso está Malcolm Lowry, autor de Under the Volcano, escritor que Markson admirava e estudava (o único trabalho de crítica publicado por Markson foi Malcolm Lowry's Volcano, que sai em 1978, tendo sido originalmente uma tese defendida em 1951). O universo de Lowry é precisamente esse que se prepara para a dissolução (que vida, afinal, é possível sob o vulcão? E perceba a ressonância fúnebre dos títulos de livros anteriores de Lowry: Ultramarine, de 1933, e Lunar Caustic, iniciado em 1936 mas publicado postumamente). Lowry pode servir de contato entre alguns escritores que compartilham essa zona cinza da dissolução. Penso, por exemplo, na epígrafe d'Os detetives selvagens:
" - O senhor quer a salvação do México? Quer que Cristo seja nosso rei?
- Não."
Malcolm Lowry
Ou ainda a epígrafe de As coisas, de Georges Perec:
Incalculáveis são os benefícios que a civilização nos trouxe, incomensurável o poder produtivo de todas as classes de riquezas originadas pelas invenções e descobertas da ciência. Inconcebíveis as criações maravilhosas do sexo humano a fim de tornar os homens mais  felizes, mais livres e mais perfeitos. Sem paralelo as fontes cristalinas e fecundas da nova vida que ainda permanece fechada aos lábios sedentos das pessoas que prosseguem em suas tarefas opressivas e bestiais.  
Malcolm Lowry
Ou o comentário de Ricardo Piglia em Formas breves:
Cumpre dizer que no romance, desde Joyce, a forma "obra-prima" converteu-se num gênero que tem suas convenções, suas fórmulas e suas linhas temáticas tão definidas e estereotipadas como as que se encontram, por exemplo, no romance policial. Dois modelos maiores do gênero são: Sob o vulcão, de Malcolm Lowry, e Adán Buenosayres, de Leopoldo Marechal (ambos publicados no mesmo ano, 1948). A relação com Dante, o fluxo esotérico, a viagem iniciática, a paródia do herói trágico, o exagero estilístico, a combinação de técnicas narrativas, a biografia de um santo, a unidade de tempo, a unidade de espaço. A estrutura firme de um dia na vida do herói busca conter os materiais à deriva. (O esquema temporal rígido e breve é o reverso do dia interminável do romancista). (Ricardo Piglia, Formas breves, trad. José Marcos Mariani de Macedo, Cia das Letras, 2004, p. 82).
Lowry, Markson e Bolaño compartilham o México - mas Bolaño também não lança a ficção em direção a um ponto perdido no tempo e no espaço, 2666, sem garantia de sobrevivência? Perec, por outro lado, também compartilha da tendência artificialista de Markson, essa utopia do narrador que é só memória, só olho, só mente - em Perec, as regras matemáticas, os jogos rigorosos, as letras que não devem aparecer, as correspondências geométricas, etc.

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