quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Sebald, Sciascia

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"...Salvatore já estava sentado diante do bar de toldo verde e lia (...). O livro que estava lendo tinha uma sobrecapa cor-de-rosa com o retrato de uma mulher em cores escuras. Em vez do título, havia embaixo do retrato a combinação de números 1912+1. (...) Depois do serviço, disse Salvatore, eu me refugio na prosa como numa ilha. (...) sua miopia e o fato de estar absorto na história contada por Sciascia o tinham isolado quase completamente de tudo que se passava ao redor. (...) No centro da narrativa de Sciascia, que se desenrolava mais na forma de ensaio, estava uma certa Maria Oggioni, nata Tiepolo, esposa de um capitano Ferrucio Oggioni, que em 8 de novembro de 1912 fuzilou o ordenança do marido, um bersagliere chamado Quintilio Polimanti (...). 
Os jornais da época, obviamente, se fartaram com a história, e o julgamento, que empolgou a fantasia da nação durante semanas - afinal a acusada, como a imprensa não se cansava de frisar, era da família do famoso pintor veneziano -, (...) não revelou por fim outra coisa a não ser a verdade que no fundo todos já conheciam, que a lei não é igual para todos e a justiça não é justa. Como Polimanti não era mais capaz de defender sua causa, ficou um pouquinho mais fácil para os juízes se deixarem conquistar totalmente pelo misterioso sorriso da signora Oggioni, que todo mundo em breve só chamava de contessa Tiepolo, um sorriso que de pronto lembrou aos jornalistas o da Gioconda, tanto mais que a Gioconda então, em 1913, povoava também as manchetes, depois que foi descoberta debaixo da cama de um operário de Florença que a libertara do exílio no Louvre dois anos antes e a levara de volta para a pátria dela" (Sebald, Vertigem, trad. José Marcos Macedo, Cia das Letras, 2008, p. 100-102).
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"Em pouco mais de uma semana, o caso Tiepolo some dos jornais. Outros fatos fazem notícia: o tango que chega de Paris; o Parsifal que é levado no Scala com um intervalo que permite ir jantar folgadamente (e surge a polêmica entre aqueles que aceitam, em caráter excepcional, a novidade, e aqueles que, em nome da tradição itálica, a rejeitam); e dá-se também o ressurgimento, em Florença, da Gioconda de Leonardo que fora roubada no Louvre dois anos antes." (Leonardo Sciascia, 1912+1, trad. Tizziana Giorgini, Rocco, 1987, p. 22).
"1913 é o ano do sufrágio universal, do pacto Gentiloni, da guerrilha na Líbia (que, terminada a guerra, mais que a guerra dá à maioria dos italianos o sentido da posse colonial, o orgulho do 'teneo te, Africa' e da equiparação às nações europeias de mais antigo, longo e sabido alcance em matérias de terras de além-mar); e era também o ano em que o nacionalismo conheceu comoções e sobressaltos que vão em direção totalmente contrária à política externa que o governo conduz." (p. 66).  

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