segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Casanova em Bolzano

É curioso que Sebald não tenha dedicado mais do que uma página a Sciascia em Vertigem, pois em 1912+1 Sciascia toca em uma série de temas caros a Sebald - as notícias de jornal, o relato atravessado pelo ensaístico, o crime, as ironias da história, os encontros ao acaso no tempo e no espaço -, além de citar dois outros autores que estão em Vertigem, citados e transformados em personagens por Sebald: Stendhal e Giacomo Casanova (Stendhal está na primeira parte de Vertigem, "Beyleou o amor", e Casanova na segunda, "All'Estero", retomado especialmente por conta de sua fuga da prisão em Veneza - na página 78 de Vertigem, Sebald inclui a imagem de um recorte de jornal: trata-se da notícia de uma peça a ser apresentada no dia seguinte em Bolzano, cujo título é Casanova al castello di Dux - o que nos lembra do romance de Sandor Márai de 1940, Casanova em Bolzano).
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1) Stendhal e Casanova surgem no texto de Sciascia por conta da beleza da condessa Tiepolo - seu sorriso à Monalisa mobilizou não apenas a compaixão da imprensa, mas também a raiva de uma série de mulheres anônimas que enviaram cartas ao tribunal. As cartas defendiam que "a beleza da acusada estimulava os homens a juízos duvidosos, menos implacáveis", escreve Sciascia, e continua: "'O que é a beleza', exclama com atroz estupor Gioacchino Belli: em um soneto onde, dando como exemplo a opção feita entre os gatinhos recém-nascidos em só criar os mais bonitinhos, jogando os demais no lixo, nos mostra, em toda a sua atrocidade, justamente, um fato que de hábito se pratica ou do qual se ouve falar sem espanto, sem horripilação. Mas a beleza... De uma mulher, a beleza, dizia Stendhal, é uma promessa de felicidade: seja ela reservada a nós ou aos outros" (1912+1, trad. Tizziana Giorgini, Rocco, 1987, p. 52). 
2) Na página seguinte, Sciascia comenta o depoimento "do professor Pompeo Molmenti", "senador do Reino" e "estudioso de história veneziana, dando especial atenção à vida libertina da cidade no século XVIII e a seu cidadão mais ilustre nesse sentido", ou seja, Casanova. "Estava publicando justamente naquele ano os Epistolari veneziani del secolo XVIII, volumoso e ainda utilíssimo livro; e dentre outros tantos trabalhos, já em 1910 dera uma primeira mostra dos Carteggi casanoviani". Polimanti, o homem assassinado pela condessa, é ligado sutilmente a Casanova no texto de Sciascia - Polimanti teria retirado dos escritos de Casanova algumas táticas de conquista, escritos esses tornados populares na Itália justamente por conta do trabalho do professor Pompeo Molmenti. É, enfim, a figura do professor Molmenti que permite a Sciascia uma digressão (mais uma) que o afasta da condessa Tiepolo e do julgamento e permite a Sciascia um comentário acerca de suas preferências narrativas:
O professor Molmenti: que é um daqueles personagens do mundo da erudição, da cultura, que sumamente me interessam, me fascinam: personagens que dedicam quase a vida inteira a seguir as pegadas, quase que a perseguir personagens que são deles, de sua vida, de seus entendimentos, exatamente o contrário. E me veio a expressão "seguir as pegadas" pensando naquele que é o exemplo mais considerável: o católico e quase (ou simplesmente) jansenista Pietro Paolo Trompeo, austero, caseiro, de sempre casta locução, que, começando ainda jovem a seguir as pegadas do ateu e libertino Stendhal na Itália romântica, seguiu-o por toda a vida mesmo em outras partes e conjunturas: com um amor e uma sensibilidade que quase diria inigualáveis. E seu primeiro livro intitula-se justamente Nell'Italia romantica sulle orme di Stendhal. (p. 54).
3) Sciascia revela nessa passagem sua preferência por "personagens" do "mundo da erudição" que perseguem outros "personagens" que são seus opostos. Sebald e Sciascia se aproximam por via dessa predileção por figuras esquecidas, soterradas na história, que por vezes realizam trabalhos metódicos e silenciosos em seus escritórios, ateliês ou laboratórios. "E me veio a expressão", escreve Sciascia, levando a digressão adiante, em direção ao crítico literário Trompeo, especialista em Stendhal, o que permite a Sciascia, finalmente, amarrar aquela breve menção a Stendhal duas páginas antes. "Seguir as pegadas": não podemos deixar de lembrar do método deambulatório e errático de Sebald e, ainda mais especificamente, sua relação com Walser e a aproximação que faz do escritor com seu avô, ambos mortos em 1956 (não se pode dizer, como faz Sciascia acerca da relação de Trompeo com Stendhal, que Sebald lidou com Walser "com um amor e uma sensibilidade que quase diria inigualáveis"?).     

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