sábado, 15 de agosto de 2015

A raposa-caçador

1) A raposa já era o caçador, de Herta Müller, não é apenas a história de uma amizade, como aponta a maioria dos resumos - a amizade de Clara e Adina, que vai aos poucos sendo minada pelo relacionamento da primeira com um agente da polícia secreta. Há pouca progressão efetiva na narrativa, ela não é exatamente dramática nesse sentido. O que parece estar em jogo é a construção de um ambiente e de um conjunto de sensações - as sensações que acompanham a vida em suspensão dentro do totalitarismo, quando só se espera. Isso é significativo também no que diz respeito ao momento histórico em que Herta localiza a história: os últimos meses do regime de Ceaucescu, ou seja, quando esse tempo de suspensão está prestes a se romper e, com ele, a estrutura narrativa necessária para dar conta dele.
2) Há uma dependência profunda que liga a poética de Herta Müller e a situação totalitária, que repercute não apenas em seus temas, motivos e situações (o interrogatório, a fila do pão, os conjuntos residenciais, a escassez, os campos), mas sobretudo em sua linguagem, que tenta dar conta dos objetos cotidianos e das relações humanas em um contexto histórico e social que os recusa. É por causa dessa situação insustentável - produzida pelo totalitarismo - que a prosa de Herta Müller surge como tal, tocando o surrealismo, abandonando por vezes a progressão dos fatos e correndo em direção a um detalhe imaginado ou sonhado, a junção de uma cor com a lembrança de uma criança e em seguida a visão dos pés de um enforcado ou uma piada sobre um anão romeno no inferno.
Paul estava sentado sozinho com sua voz na cozinha e monologava para os outros dois, alto. Hoje à noite, ele disse, um homem e uma mulher deram entrada no hospital. O homem tinha uma pequena machadinha de madeira enterrada na cabeça. O cabo da machadinha parecia ter nascido no meio do cabelo. Não se via nem uma gota de sangue em sua cabeça. Os médicos se reuniram em torno do homem. A mulher disse, aconteceu há uma semana. O homem riu e disse que se sentia bem. Uma médica disse, é possível apenas cortar o cabo, não dá para extrair toda a machadinha porque o cérebro se acostumou. Depois, os médicos extraíram a machadinha. O homem morreu durante o procedimento. (Herta Müller, A raposa já era o caçador. Trad. Claudia Abeling. Biblioteca Azul, 2014, p. 88-89).
3) O que diferencia os livros de Herta Müller de outros livros sobre o totalitarismo é seu método de absorção do absurdo pela linguagem, para além das cenas, dos relatos, das anedotas - a situação totalitária, instável, com regras móveis e insegurança constante, repercute na recusa da progressão romanesca ou na recusa da composição restrita dos personagens. Mas mesmo na dimensão dos personagens essa instabilidade permanece e é reforçada: o que quer dizer, afinal, que a raposa já era o caçador? Quer dizer que o poder totalitário transforma a todos em caçadores, em vigias, informantes, traidores. Não há coesão social, comunidade ou viver-junto que se sustente sob o totalitarismo - e é por conta disso que não podemos "confiar" nos personagens de seus romances, ou seja, confiar em seus traços e em suas características, porque esse registro e essa expectativa não pertencem a esse projeto e a essa linguagem.
O caçador pôs a raposa sobre a mesa e alisou seu pelo. Ele disse, não se atira em raposas, as raposas caem em armadilhas. Seu cabelo e sua barba e os pelos de suas mãos eram vermelhos como a raposa. Seu rosto também. Naquela época a raposa já era o caçador. (p. 137).

2 comentários:

  1. Muito curioso, incluí o livro na lista de leitura.

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    1. Olá, Tiago. Vale a pena, aliás, toda a obra da Herta Müller vale a leitura.

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