domingo, 21 de junho de 2015

Jones, Mannion, Martin Guerre

Edward G. Robinson como Arthur Ferguson Jones
Ainda pensando na predileção de Montaigne pelas "mímicas" e pelos "tiques" - que Compagnon comenta como "gestos não controlados", que "escapam da vontade", e que agradam a Montaigne porque "dizem mais sobre um homem do que as façanhas de sua lenda". Pensando no ensaio "Da experiência", quando Montaigne fala de suas fotografias, de como não se reconhece aos vinte e cinco, aos trinta e cinco anos (como no "auto-espanto" de Cioran comentado por Milan Kundera); ou no ensaio "Dos coxos", quando comenta o caso Martin Guerre no século XVI, ou ainda, o encontro dos dois Martin Guerre, o "impostor" e o "real", que retorna (e suas inúmeras repetições ao longo da história, como em Il teatro della memoria, de Leonardo Sciascia, sobre um caso de personificação/loucura na Itália de 1927, ou Impostura, de Vila-Matas, sobre um caso espanhol semelhante - livro que Vila-Matas afirma ter sido inspirado tanto por Sciascia quanto por Pirandello). 
Jones no restaurante, prestes a ser identificado como Mannion
O contato dos "gestos não controlados" com o tema da impostura leva a um filme de John Ford de 1935, The Whole Town's Talking. Edward G. Robinson interpreta dois personagens: Jones, um pacato e apagado funcionário de escritório, e "Killer" Mannion, assaltante de bancos e assassino que acaba de fugir da prisão. A notícia da fuga no jornal é acompanhada de uma foto de Mannion: descobre-se que o funcionário e o matador são idênticos. Jones é preso no lugar de Mannion e a polícia não aceita sua insistente e desesperada defesa - "Meu nome é Arthur Ferguson Jones! Eu sou membro da ACM!". Depois de horas, ele acaba sendo solto, tendo consigo uma carta assinada pelas autoridades, que assegura que ele não é Mannion, e sim Jones. 
 É claro que Mannion vai à casa de Jones atrás da carta, para que ele, Mannion, possa ser Jones durante a noite (cometendo crimes com a ajuda da carta). A dinâmica segue mais ou menos essa até o confronto final, e a performance de Robinson é impecável na diferenciação que faz entre Jones e Mannion, com exceção de um mínimo detalhe, de um "gesto não controlado", de um "tique" como aqueles de Montaigne: várias vezes Jones aparece molhando o dedo na língua para manipular papeis, cartas, jornais, cardápios; mas já para o final do filme, quando Mannion está convencendo Jones a cair na última armadilha, é ele quem molha o dedo com a língua, Mannion e não Jones - ou ainda, Mannion repete um gesto que é de Jones, um gesto que, aparentemente, não é de nenhum dos dois, mas de Robinson, o ator (um curto-circuito na impostura de uma impostura).
Mannion pressiona Jones, repete seu gesto e trai a impostura

Nenhum comentário:

Postar um comentário