domingo, 26 de abril de 2015

Auto-espanto

Primeira edição do primeiro livro de Cioran em francês, 1949
1) Em A Cortina, Milan Kundera fala de Cioran: de como o escritor romeno, aos 26 anos, instala-se em Paris em 1937, publicando seu primeiro livro em francês dez anos depois e alcançando sucesso e notoriedade. A morte de Cioran, em 1995, reforça e amplia um cenário de revisionismo (como acontecera na década anterior com Paul de Man): "o tempo do grande acerto de contas com o passado começa, e as opiniões fascistas do jovem Cioran da época em que vivia na Romênia tornam-se subitamente a atualidade", escreve Kundera. Nenhuma palavra sobre sua obra, continua Kundera: "eles vestiram o cadáver do grande escritor francês com uma roupa folclórica romena e o forçaram, no caixão a levantar o braço fazendo uma saudação fascista".
2) Uma construção em abismo surge, de repente: na coletânea Exercícios de admiração, publicada originalmente em 1989, Cioran fala de Heidegger em dois breves parágrafos. O corte entre juventude e maturidade se repete, mas aqui nas mãos de Cioran, que se apresenta como um ex-admirador de Heidegger, de seu jogo com a linguagem, seu obscurantismo, elementos que o fascinaram na juventude e que perderam seu efeito, são agora "exasperantes" (diz Cioran). Além disso, a ironia da sobrevivência pós-guerra tanto de Heidegger quanto de Cioran ter sido mediada pela França e pelo francês (Sartre e Jean Beaufret para o primeiro; Blanchot e Caillois para o segundo - mais ao fundo do abismo nota-se a questão da migração de Blanchot da direita para a esquerda, por exemplo).
3) Na continuação de seu comentário, Kundera declara ter encontrado um texto de Cioran de 1948 (mas não dá título ou procedência) no qual ele escreve: "Quando repenso todo o delírio do meu eu de então parece que estou me debruçando sobre as obsessões de um estrangeiro, e fico estupefato de saber que esse estrangeiro era eu". Assim como Kundera, Herta Müller, no texto que dedica a Cioran em Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio, valoriza esse abandono do passado e esse auto-espanto de Cioran. "O que me interessa nesse texto é o espanto do homem que não consegue encontrar nenhuma ligação entre seu 'eu' presente e aquele do passado, que fica estupefato diante do enigma da sua identidade" (A cortina: ensaio em sete partes. Trad. Teresa Bulhões, Cia das Letras, 2006, p. 128-129).    

terça-feira, 21 de abril de 2015

Sobre Said (comentário)


Caravaggio, Conversão de São Paulo, 1600-1601
1) O ponto mais interessante da avaliação que Terry Eagleton propõe da figura de Edward Said é quando sublinha sua posição indecidível diante da teoria - Said como "um humanista à moda antiga que foi forçado pelas exigências da sua história pessoal a participar de tipos de trabalho intelectual que contestavam a tradição na qual ele foi criado", diz Eagleton. Said como uma espécie de agente duplo, de espião, de agente infiltrado, manejando dois idiomas em paralelo, aquele da tradição e aquele que contraria a tradição. É significativo que logo antes dessa definição Eagleton aproxime a "teoria" da "psicanálise" a partir de Karl Kraus - "a teoria é o problema para o qual ela mesma oferece uma solução" -, pois o próprio Freud encontrou uma situação bastante semelhante: partindo do seio de uma sociedade tradicional e conservadora, da qual ele sentia fazer parte, ele atenta para seus conteúdos oprimidos e recalcados e a partir deles, um pouco contrariado, deriva sua teoria. 
2) Segundo Eagleton, Said "atacou a cultura ocidental a partir de um ponto de vista que estava imerso naquela cultura, que tinha uma profunda afeição por ela, e esse tipo de crítica é sempre mais difícil para os poderes vigentes repelirem do que uma crítica meramente externa", tal como Freud, portanto. Mas não apenas Freud. Se pensarmos o indecidível como apontou Derrida - não a contradição entre dois polos, mas o contato entre dois imperativos; ou ainda, como em Espectros de Marx, não a disjunção entre aparência e essência, mas a conjunção entre espectralidade e materialidade -, o maior exemplo desse paradigma do trabalho duplo só pode ser Jesus Cristo, saído do judaísmo, mas simultaneamente completando, atualizando e implodindo o judaísmo; Cristo como o indecidível entre carne e espírito, entre palavra e silêncio, entre luta e entrega, entre Igreja e Estado, todos os elementos mantidos não de forma contraditória, mas igualmente imperativa. 
3) Tal dinâmica é reforçada historicamente com o percurso do Apóstolo Paulo, o perseguidor de cristãos que se transforma em inventor do cristianismo na estrada de Damasco (Agamben afirma, em Il tempo che resta - Un commento alla Lettera ai romani, que o objetivo de Paulo não é o de fundar uma religião, mas explorar a suspensão messiânica da lei judaica, ou seja, sua irrevogável "desconstrução" promovida por Cristo - Agamben aproxima Paulo de Walter Benjamin, que operou essa suspensão indecidível em duas frentes: no marxismo e no misticismo judaico, atuando como agente duplo em duas frentes simultâneas).

domingo, 19 de abril de 2015

Sobre Said

    
      Em retrospecto, qual é sua avaliação de Said?

     Acho que é fundamental reconhecer que Said não era primariamente um teórico. Pode-se dizer que ele era mais importante do que isso. Na verdade, ele acabou se tornando bastante hostil à assim chamada "teoria". Sua trajetória foi mesmo de Auerbach a Foucault e de volta a Auerbach. A teoria é em parte, mas só em parte, o problema para o qual ela mesma oferece uma solução, como Karl Kraus observou sobre a psicanálise. Said era, em termos intelectuais, um humanista à moda antiga que foi forçado pelas exigências da sua história pessoal a participar de tipos de trabalho intelectual que contestavam a tradição na qual ele foi criado. Talvez ele tenha desejado apenas escutar óperas, em vez de escrever sobre a Palestina. Seu objetivo, como o de qualquer radical, era chegar a uma situação política em que escrever sobre a opressão não seria mais necessário porque a opressão teria sido superada. Então poderíamos todos apreciar Schumann e escrever sobre a imagística das cores nas primeiras obras de D. H. Lawrence. Quando pudermos fazer isso de sã consciência, isso será um sinal de que fomos bem-sucedidos. Quanto mais rápido pudermos prescindir da política radical, melhor. Cuidado com qualquer radical político que não tenha entendido esse simples fato. Mas a política radical é como a classe social ou o estado nacional: para nos livrarmos deles, é preciso primeiro tê-los. E não podemos renunciá-los prematuramente. 
     A cautela com a teoria torna a obra de Said muito mais interessante do que a de um teórico que tenha sido, por assim dizer, nascido e criado na profissão - os novos historicistas, por exemplo. Isso significa que ele atacou a cultura ocidental a partir de um ponto de vista que estava imerso naquela cultura, que tinha uma profunda afeição por ela, e esse tipo de crítica é sempre mais difícil para os poderes vigentes repelirem do que uma crítica meramente externa. Ele não tinha paciência alguma com o que poderíamos chamar de teoricismo. Dada sua urgente situação política, isso simplesmente não teria sido possível para ele. Assim, em certo sentido, agrupar Said com, por exemplo, Roland Barthes ou Harold Bloom, ou até mesmo com Fredric Jameson, seria cometer um erro de categoria. Se no início ele tinha interesse em Foucault, isso ocorreu em parte porque Foucault era um ativista político como ele, que via as ideias de forma pragmática em vez de abstrata. 

Terry Eagleton e Matthew Beaumont. A tarefa do crítico: diálogos com Terry Eagleton. Tradução de Matheus Corrêa. São Paulo: Editora UNESP, 2010, p. 177-178.

domingo, 12 de abril de 2015

Quadro, mesa - 1

Adalbert Stifter
O Museu imaginário de Malraux é de 1951, bem como An American in Paris, de Vincente Minnelli. No ano seguinte, 1952, Erich Auerbach publica o ensaio "Filologia da Weltliteratur", ou ainda, "Filologia da literatura mundial", em um volume coletivo publicado em Berna em homenagem ao professor, filólogo e teórico Fritz Strich (o que me faz lembrar do ensaio sobre Van Gogh que Meyer Schapiro publica em 1968, dedicado a outro professor alemão, Kurt Goldstein). O ensaio de Auerbach é rico em associações, tomando frequentemente o aspecto de um panorama experimentativo - um ensaio, enfim. Auerbach cita um trecho de Adalbert Stifter (1805-1868, referência fundamental para Sebald, que a ele dedicou dois ensaios), de seu romance Der Nachsommer, publicado em 1857 (o mesmo ano em que Flaubert e Baudelaire foram processados por atentado à moral). Auerbach retoma Stifter dentro de uma argumentação que o aproxima do projeto visual de Malraux. Eis o trecho de Der Nachsommer citado por Auerbach: "Seria muito desejável que, depois do fim da humanidade, fosse dado a um espírito reunir e contemplar toda a arte do gênero humano, desde as suas origens até o seu desaparecimento". E Auerbach comenta: "Stifter pensa aqui apenas nas artes plásticas, e creio que ainda não se pode falar de um fim da humanidade. Mas parecemos ter atingido um ponto de conclusão e virada que oferece ao mesmo tempo possibilidades inéditas para uma visão de conjunto" (Ensaios de literatura ocidental, trad. Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo, Ed. 34, p. 361). Possibilidades inéditas para uma visão de conjunto.    

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Quadro, mesa

Duas imagens semelhantes, quase contemporâneas: Malraux escolhendo as imagens para Le Musée Imaginaire, editado pela primeira vez em 1947, mas que retorna em 1951 como primeiro tomo de um projeto mais amplo de Malraux, Les Voix du silence. Também em 1951 Vincente Minnelli lança An American in Paris, filme com Gene Kelly e Leslie Caron - Kelly é o pintor Jerry Mulligan, que nesse momento do filme organiza seus quadros para uma exposição. As duas imagens desembocam na reflexão proposta por Didi-Huberman a partir do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg: o atlas é uma "mesa de orientação" que explora a relação entre o tableau e a table, ou seja, entre o quadro e a mesa; a passagem de um cenário fixo, estabelecido, consagrado (o quadro), para um cenário da possibilidade, do devir e do processo.