quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O torrão

Pierre Michon
1) Em determinado momento de Vidas minúsculas, de Pierre Michon, um pai estranha seu filho, não o reconhece na lida com a terra, ou imagina ver ali uma inadequação inaceitável do filho diante da terra. "Ora, o pai amava o seu torrão", escreve Michon, "quer dizer que seu torrão era seu pior inimigo e que, nascido nesse combate mortal que o mantinha de pé, fazia-lhe as vezes de vida e lentamente o matava, na cumplicidade de um duelo interminável e começado bem antes dele".  
2) Um duelo interminável que tinha começado bem antes dele, ou seja, a vida humana costurada a esse ciclo natural amplo e de longo alcance, gerações e gerações de indivíduos para dar conta de um mísero pedaço de terra. Mas o filho "entregava as armas, porque a terra não era sua inimiga mortal: seu inimigo mortal era ele" (Vidas minúsculas, tradução de Mário Laranjeira, Estação Liberdade, 2004, p. 38). 
3) Talvez influenciado pelo fato de Michon usar Van Gogh em outro livro (Senhores e criados), eu vi nessa cena entre pai e filho, nessa cena de inadequação que leva ao exílio (o filho some e nunca mais se sabe com certeza de seu paradeiro) uma série de possibilidades veladas para Van Gogh - pensando especificamente nos sapatos de Van Gogh, na leitura de Heidegger (os sapatos estão para a técnica como a técnica está para o mundo, a terra, o "torrão", num "duelo interminável" que é precisamente a história do homem diante e com a técnica, a antropotécnica, para usar o termo de Sloterdijk) e também na leitura confrontativa de Meyer Schapiro (o ensaio de Schapiro tem como título "a natureza-morta como objeto pessoal", ou seja, "a terra não era sua inimiga mortal: seu inimigo mortal era ele", seu exílio, sua deambulação, sua inquietude, sua expulsão). 

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