terça-feira, 8 de julho de 2014

Traidor, herói

1) Acredito que mais do que "O sul", o modelo borgiano por excelência para a obra de Piglia - especialmente para o recente O caminho de Ida - seja "O tema do traidor e do herói", conto que Borges publica primeiro na revista Sur e, em 1944, em livro. Borges conta a história de um traidor que é transformado em herói em nome de uma "causa revolucionária", marcando, contudo, essa transformação de um extremo a outro com uma série de referências literárias (é a partir dessas referências - Júlio César e Macbeth de Shakespeare - que a farsa é lida e decifrada muito tempo depois).
2) Traição e heroísmo como elementos complementares, como variações possíveis dentro de um mesmo evento (a maleabilidade dos signos, das referências, das explicações, das verdades). A adaptação que Bertolucci fez do conto de Borges, em 1970, com o filme Strategia del ragno, ressalta o componente político que é evidenciado também por Piglia (sobretudo no que diz respeito ao contexto totalitário latino-americano), mas o faz a partir do fascismo italiano, o que nos permite resgatar Gramsci, Sciascia, Pirandello, entre outros, a partir do breve esquema: 
a) Borges anuncia logo no início do conto que a história poderia ocorrer em qualquer país "oprimido e tenaz", em qualquer época; Bertolucci escolhe a Itália fascista de 1936, ano chave do fascismo;
b) 1936 é também o ano de morte de Pirandello, grande artífice das farsas, escritor que Leonardo Sciascia escolheu como mestre;
c) Sciascia que, como Piglia, investiria em uma poética marcada pelo jogo e pela ironia, pelo gosto de evocar precisamente essa "maleabilidade dos signos" políticos presente no conto de Borges.
3) Bertolucci faz não apenas traidor e herói confluírem para o mesmo indivíduo, mas a própria concepção da mistura, que no conto de Borges é creditada a outro (Kilpatrick é o traidor/herói, mas é Nolan quem arquiteta a mistura; em Bertolucci não, é Athos Magnani o responsável pelo plano de sua própria morte e de sua própria impostura póstuma). Resta ainda equacionar a entrada de Conrad nessa história (O agente secreto, arqui-texto de O caminho de Ida), mas Thomas Munk, o terrorista, surge como uma mescla de Enrico IV (o personagem de Pirandello que finge ser louco para incutir loucura naqueles que o cercam) e de Kilpatrick, dedicado a arquitetar um plano que acarretaria tanto sua queda (louco, terrorista) quanto sua redenção (profeta, visionário). 

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