terça-feira, 17 de junho de 2014

Notas sobre Ida

1) Assim como faz em Blanco nocturno, Ricardo Piglia, em O caminho de Ida, trabalha com o deslocamento geográfico do narrador, que gera, por sua vez, um deslocamento cognitivo, um rearranjo da percepção (em Blanco, o povoado fica a "340 quilômetros da capital", Buenos Aires; em Ida, há um duplo deslocamento, de Renzi que sai da Argentina para os Estados Unidos, e aquele suplementar que distancia Nova York do espaço ordenado do campus, inspirado em New Haven; é o "tempo no espaço" que marca o cronotopo de Bakhtin). 
2) Por trás desse deslocamento se esconde um dos temas principais da poética de Piglia - um ponto, aliás, que articula seu trabalho "ficcional" e seu trabalho "ensaístico" ou "teórico", se é que seja possível separar um do outro. Trata-se do tema da ostranenie, o tema formalista do estranhamento, de Chklóvski sobretudo, que Piglia vem citando há anos e que está também presente em O caminho de Ida:
A tendência do idioma russo à expressão mística era um tipo de imperfeição ontológica que não aparecia em outras línguas indo-europeias. (...) Tolstói, disse depois, é o maior dos nossos escritores porque lutou contra essa debilidade da língua, e nessa luta, disse Nina, descobriu a ostranenie. (...) Sem Tolstói não é possível conceber Mandelstam, nem Akhmátova, nem Chklóvski. (O caminho de Ida, trad. Sérgio Molina, Cia das Letras, 2014, 87-88).
3) Evocando a ostranenie, o deslocamento geográfico em Piglia ganha ressonâncias teóricas, sem, contudo, deixar de ganhar também ressonâncias políticas, como o resgate textual de O agente secreto de Conrad deixa bem evidente (Piglia reproduz no meio do romance uma página de Conrad, uma página sublinhada, grifada e anotada pela personagem Ida). Que estranhamento maior pode existir do que aquele de incorporar ao próprio texto a imagem do texto alheio? Não só isso, Piglia propõe uma remontagem do texto de Conrad, como se os grifos de Ida pudessem contar outra história, uma história que estaria escondida sob o texto de Conrad. Uma espécie de utopia à maneira de David Markson - uma leitura tão intensa que gera uma reescrita suplementar.

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