domingo, 9 de março de 2014

Purificação e método

Contextualização: em outubro de 1977, na Universidade Columbia, em Nova York, convidado por Edward Said, Jacques Derrida oferece um seminário sobre Heidegger, sobre a origem da obra de arte, sobre Van Gogh e suas imagens dos sapatos. Derrida resgata Meyer Schapiro e sua contestação das ideias "generalistas" de Heidegger sobre os quadros de Van Gogh. É desse confronto que Didi-Huberman fala abaixo:
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Quando encontramos uma resposta, caberia sempre reinterrogar a pergunta que a viu nascer, não se satisfazer com respostas. O historiador da arte que desconfia naturalmente do "teórico", em realidade desconfia, ou melhor, teme o fato estranho de que as questões podem perfeitamente sobreviver às respostas. Meyer Schapiro, que renovou tantas problemáticas e reformulou admiravelmente tantas perguntas, incorreu ele mesmo no perigo - esse perigo epistemológico, igualmente ético, que definiremos por sua consequência extrema, a suficiência e o fechamento metodológicos. Quando opunha seus sapatos de Van Gogh, "corretamente atribuídos", aos de Heidegger, Schapiro sem dúvida punha o dedo em algo importante, ele deslocava de novo a questão. Mas ele terá dado a muitos (certamente não a si mesmo) a ilusão de resolver a questão, de encerrar o assunto - portanto de simplesmente invalidar a problemática heideggeriana. É ainda a ilusão de que o discurso mais exato, nesse domínio, seria necessariamente o mais verdadeiro. Mas um exame atento dos dois textos remete, no fim das contas, os dois autores à sua parte recíproca de mal-entendido - sem que a exatidão, e em particular a atribuição desses sapatos "de" Van Gogh, possa decididamente se valer da verdade "'de' tal pintura" (em nota: é uma das consequências da análise feita por J. Derrida sobre esse debate entre M. Schapiro e M. Heidegger: análise que põe em questão, nos dois autores, o "desejo de atribuição" interpretado como "desejo de apropriação").
Georges Didi-Huberman. Diante da imagem. Trad. Paulo Neves, Ed. 34, 2013, p. 44-45.
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Desde 1937, os nazistas haviam iniciado, em todo o Reich, amplos expurgos de obras indesejáveis, eliminando - seja por venda, seja por destruição - cerca de dezessete mil pinturas, desenhos e esculturas dos museus alemães. Por meio dessa venda, cujos lucros iriam encher os cofres do Partido Nazista, o regime hitleriano se desfazia de uma vez por todas de cento e vinte e cinco obras-primas que por razões ideológicas já não tinham lugar nos museus nacionais.
No grande leilão de junho em Lucerna, o mais prestigiado do projeto nazista de purificação artística, o catálogo de vendas de Fischer apresentava uma insuperável seleção de obras de artistas modernos rejeitados oficialmente pelos alemães. Estavam à venda a Mulher bebendo absinto, pertencente ao período azul de Picasso, um magnífico Autorretrato de Van Gogh, as Banhistas de Matisse, o Rabino de Chagall, obras de Kokoschka, de Franz Mark e de muitos outros artistas modernos.
Héctor Feliciano. O museu desaparecido: a conspiração nazista para roubar as obras-primas da arte mundial. Trad. Silvana Leite, WMF Martins Fontes, 2013, p. 208.
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O expurgo hitleriano, por esse perspectiva e através desse contraste com a citação de Didi-Huberman, torna-se também um problema epistemológico, uma questão de método (como surge também na reflexão de Dolf Oehler). Em termos epistemológicos, e para retomar os termos que Derrida usou em seu comentário sobre Schapiro e Heidegger, o expurgo hitleriano remove o "desejo de atribuição" e deixa apenas o "desejo de apropriação", instaurando também a impossibilidade de dissenso, de revisão de rearranjo histórico. A "purificação" hitlerista é análoga ao perigo "ético e epistemológico" comentado por Didi-Huberman por conta do "fechamento metodológico". 

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