domingo, 13 de outubro de 2013

Beberrões e narradores

1) A história que conta Joseph Roth em A lenda do santo beberrão carrega grandes chances de ser precisamente isso, uma lenda, um delírio, a alucinação de um beberrão - elementos mágicos e fantásticos abundam, visões religiosas, encontros e acasos inexplicáveis. Tudo dentro daquela estrutura ficcional irretocável típica de Roth, com os fatos, os dados, as imagens e as viradas narrativas nos lugares certos: "Numa noite de primavera de 1934", ele escreve no primeiro parágrafo, "um cavalheiro de idade madura descia os degraus de pedra que levam de uma das pontes do Sena para as suas margens. Ali, como quase todo mundo sabe, mas merece ser relembrado nesta ocasião, costumam dormir, ou melhor dizendo, acampar os sem-teto de Paris" (A lenda do santo beberrão, tradução de Mário Frungillo, Estação Liberdade, 2013, p. 9).
2) O delírio do beberrão se mescla a um local geográfico propício à proliferação dos delírios e das alucinações - as pontes do Sena e seus recantos obscuros, esses portais que levam ao mistério e à degradação, como mostrou Cortázar n'O jogo da amarelinha. Mas Joseph Roth é insistente ao longo de sua obra em demonstrar como o beberrão se aproxima do narrador, e como a substância entorpecente pode favorecer o acesso à narrativa - é como se a própria comunidade que se forma ao redor da bebida indicasse um espaço mágico de recepção da narrativa, como os poetas arcaicos ao redor da fogueira, como Homero antes da escrita. Está em Confissão de um assassino, o "romance russo" de Roth, de 1936, no qual toda a história é desencadeada a partir de um encontro em um bar, e vai ficando cada vez mais complexa e intrincada quanto maior é a quantidade de álcool no sangue do narrador. E o santo beberrão de Roth é uma espécie de xamã do entre-guerras, construindo sua mitologia enquanto a vive (ou enquanto repassa o vivido num breve delírio antes de morrer).
3) George Orwell, num texto de 1931, muito próximo das andanças não só de Roth mas de seu santo beberrão, um texto intitulado "O albergue", fala desse poderoso vínculo entre os sujeitos, a bebida e a narração - mesmo na ausência da bebida a substância entorpecente é evocada como facilitadora da narração, os beberrões evocam a bebida ausente e, ao fazê-lo, evocam também a narrativa que vem com ela, que é facilitada e por vezes até criada por ela: "Bill, o parasita, o de melhor compleição de nós todos, um mendigo hercúleo que cheirava a cerveja mesmo depois de doze horas de albergue, contou histórias de furtos, de canecas de cerveja que lhe foram pagas em botequins (...); o imbecil", ou seja, "Papai Velho", de 74 anos, "o imbecil balbuciou sobre um grã-fino imaginário que certa vez lhe dera 257 soberanos de ouro" (Como morrem os pobres, tradução de Pedro Maia Soares, Companhia das Letras, 2011, p. 51). Orwell não é generoso como Roth e coloca esse imaginário no meio do relato - algo que Roth, por sua vez, deixa pairando ao longo de toda narrativa de A lenda do santo beberrão, sem nunca esclarecer. 

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