sexta-feira, 26 de abril de 2013

Digressão: Descartes

1) A citação de Coetzee em Diário de um ano ruim leva a Descartes - larvatus prodeo, mascarado, dissimulado eu avanço (em direção ao futuro mas também em direção ao passado, principalmente ao passado, pois Descartes escreve essas palavras quando muito jovem, quando busca sua progressão diante de um cenário tradicional, estabelecido). A imagem acima, curiosamente, não é um comentário ou uma "representação artística" dessas palavras. Tem um objetivo bem mais direto: provar que um crânio encontrado em um museu depois de uma enchente era, de fato, o crânio de Descartes. 
2) Em 1821, o crânio de Descartes foi descoberto por um francês na Suécia e levado a Paris, onde permaneceu no Museu de História Natural. Em janeiro de 1910, a cidade sofre com uma enchente, que atinge também o museu: todo tipo de relíquia flutua indistintamente pelos salões. Onde está o crânio de Descartes? Com o recuo das águas, aparece uma caveira, sem qualquer tipo de identificação. Paul Richer, assistente do célebre médico Charcot, especialista em arte e anatomia (quantas vezes não deve ter cruzado com Freud pelos corredores), surge com uma ideia: a partir do retrato de Descartes pintado por Frans Hals, ele faz uma projeção da ossatura do filósofo e constrói sua escultura em camadas. O plano dá certo e a autenticidade é confirmada (numa apresentação com ampla cobertura da mídia, em janeiro de 1913). A escultura de Richer transforma o rosto de Descartes em máscara, em prótese, em jogo de dissimulação - tal como ele queria, larvatus prodeo, mas muito longe daquilo que buscava Richer.      
Frans Hals, retrato de Descartes, 1649
3) Em 1992, Sebald vai em busca do crânio de Thomas Browne, perdido em algum ponto do leste da Inglaterra. Está em Os anéis de Saturno: a imagem do crânio de Browne e a imagem da lição de anatomia pintada por Rembrandt - segundo Sebald, Browne estava lá e Descartes também estava lá. Acompanhavam a dissecação do corpo de um ladrão, a remoção das camadas. Somente depois de 1921, escreve Sebald, foi atendido "o repetido pedido da paróquia de St. Peter Mancroft de que o crânio de Browne lhe fosse devolvido". O que poderia ter escrito Sebald se soubesse também do crânio de Descartes, se tivesse buscado o crânio de Descartes assim como buscou o de Thomas Browne? Paul Valéry relata em seus Cadernos que teve em suas mãos o crânio de Descartes, em uma visita ao Museu de História Natural (Reino Virtanen, L'imagerie scientifique de Paul Valéry, J. Vrin, 1975, p. 124). Nada mais adequado ao criador do Monsieur Teste (cabeça, texto, ficção e máquina). 
Crânio de Thomas Browne

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