sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Exame de si

1) Mais de dois anos atrás, a partir da leitura da biografia escrita por Didier Eribon, cortei e montei alguns fragmentos da vida de Michel Foucault, procurando um fio narrativo feito de pontos em suspensão. Mas foi em uma entrevista bastante despretensiosa que encontrei, através das palavras do próprio Foucault, uma cena inaugural muito poderosa (que está ausente da biografia). 
2) A entrevista foi feita por um fotógrafo americano (J. Bauer) em algum ponto de 1976, 1977. No ano seguinte, sai uma tradução ao italiano na revista Playmen - que foi, curiosamente, a versão italiana da Playboy. A nota explicativa da edição dos Ditos e escritos de Foucault diz que a entrevista foi "filtrada por duas traduções", o que não deixa muito claro o cenário, que talvez tenha sido o seguinte: Foucault conversou em francês com Bauer, que traduziu ao inglês (não se sabe onde foi publicada originalmente), e os editores de Playmen traduziram ao italiano a versão em inglês - até que, finalmente, tudo isso foi levado de volta ao francês quando começaram a organizar os textos esparsos de Foucault para a edição original dos Ditos e escritos (1994).
3) Como se a coisa já não estivesse suficientemente confusa, eu cito a tradução ao português: Bauer pergunta a Foucault: seus interesses sempre foram filosóficos?, e ele responde:
Tal como meu pai, me orientei para a medicina. Pensava em me especializar em psiquiatria e, assim, trabalhei três anos no Hospital Sainte-Anne de Paris. Eu tinha 25 anos, era extremamente entusiasta, idealista, por assim dizer, dotado de um bom cérebro e de um monte de ideias importantes. Mesmo naquela época! Foi então que entrei em contato com alguém, que chamarei Roger, um interno de 22 anos. Ele havia sido enviado para o hospital porque seus pais e amigos temiam que ele se fizesse mal e acabasse se autodestruindo, quando de uma de suas frequentes crises de angústia violenta. Nós nos tornamos bons amigos. Eu o via várias vezes ao dia durante minhas visitas ao hospital, e ele começou a simpatizar comigo. Quando ele estava lúcido e não tinha problemas, ele parecia muito inteligente e sensato, mas, em alguns outros momentos, sobretudo os mais violentos, devia ficar enclausurado. Ele era tratado com medicamentos, mas esta terapia se mostrou insuficiente. Um dia, me disse que sabia que nunca o deixariam partir do hospital. Esse terrível pressentimento provocava um estado de terror que, por sua vez, gerava angústia. A ideia de que podia morrer o inquietava muito, e ele até pediu um certificado médico que atestaria que nunca se iria deixá-lo morrer. É claro que esta súplica foi considerada ridícula. Seu estado mental deteriorou e, afinal, os médicos concluíram que, se não se interviesse, fosse de que modo fosse, ele se mataria. Assim, com o consentimento de sua família se procedeu a uma lobotomia frontal nesse rapaz excepcional, inteligente, mas incontrolável... Embora o tempo passe, não importa o que eu faça, não consigo esquecer seu rosto atormentado. Com frequencia eu me perguntei se a morte não seria preferível a uma não-existência, e se não deveriam nos conceder a possibilidade de fazer o que quisermos de nossa vida, seja qual for nosso estado mental. Para mim, a conclusão evidente é que mesmo a pior dor é preferível a uma existência vegetativa, já que o espírito tem realmente a capacidade de criar e embelezar ainda que partindo da existência mais desastrosa. Das cinzas surgirá sempre um fênix...
"Conversação sem complexos com um filósofo que analisa as 'estruturas do poder'". Ditos e escritos, vol. IV: estratégia, poder-saber. Tradução de Vera Ribeiro. Forense, 2006, p. 308-309.

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