sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O idiota da família

1) Na página 127 de Primeiro como tragédia, depois como farsa, Slavoj Zizek fala da necessidade de derrubar o grande Outro: essa entidade simultaneamente irracionalista [porque encerra em si tudo que "nunca poderemos entender" ou que "supera nossa contingência histórica"] e pseudo-humanista [porque leva adiante a trapaça que o sujeito é "inerentemente complexo", cujos atos podem ser separados da subjetividade: "o soldado também sente medo", "o nazista também tem família"].
2) Ainda segundo Zizek, no momento em que cai o grande Outro, o Líder não pode mais reivindicar uma relação privilegiada com o conhecimento, e, por fim [e isso é importante], ele se torna um idiota como todo mundo. De forma deliberadamente anacrônica, poderíamos dizer que o procedimento de Flaubert é da mesma ordem, e ele se desdobra em pelo menos dois momentos: a frase irritantemente célebre de que "Bovary sou eu" e seu projeto final e inacabado de construir uma História da Estupidez em forma de verbetes [em outras palavras, um Inventário da Idiotice].
3) Se Bovary é o grande Outro [e continua sendo, para tantos, esse receptáculo de enigma, essa Esfinge] e se o desejo de Flaubert era de fato explodir a subjetividade do autor [mantendo apenas o texto, a materialidade da concatenação das palavras], o Outro vai abaixo quando é ligado ao Eu, que é nada. Consequentemente, Bovary sou Eu, Bovary é Nada, Bovary é um idiota como todo mundo [o que nos levaria a outra frase célebre de Flaubert: "há uma Bovary em cada povoado da França"].
4) Evidentemente, Flaubert era também Bouvard, era também Pécuchet: a estupidez sempre lhe atravessou, permanentemente, ele era sensível a ela, sabia que toda condição de saber, de conhecimento, de perfeita manipulação da arte é também um pacto com a Idiotice, que sempre espreita o artista. Não há relação privilegiada com o Conhecimento possível, parece dizer Flaubert [citando Zizek]. O dicionário de Flaubert, seu Inventário da Estupidez, não é uma forma elitista de jogo de salão, é uma celebração amarga da queda do grande Outro, que somos todos nós [eis a grande fissura ontológica do pensamento: eu sou sempre o Outro do Outro]. A literatura, por fim, mostra que sou um idiota cercado por idiotas, em uma comunidade secreta cheia de senhas e sinais secretos.
5) No prefácio que escreve à edição espanhola do livro Trens rigorosamente vigiados, de Bohumil Hrabal, Monika Zgustová escreve que "entre a vida e a obra de Hrabal existe uma afinidade evidente", e cita um testemunho do próprio Hrabal: "Os erros que cometi em minha vida meus protagonistas também cometem em suas vidas", escreve ele. "Aquilo que me enche de orgulho, as coisas pequenas mas muito humanas, também enche de orgulho os meus heróis".

Um comentário:

  1. Fiquei muito interessado neste livro, mas parece que não foi lançado no Brasil.

    Sobre os bobos, há um romance magnífico sobre um anão sociopata, escrito por Par Lagerkvist, que ganhou o Nobel de literatura. Pena que é impossível comprá-lo.

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