segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O filho de Stálin

Só em 1980 se soube da morte do filho de Stálin, Iacov, por um artigo publicado no Sunday Times. Prisioneiro de guerra na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, ele ficou no mesmo campo que os oficiais ingleses. Tinham latrinas comuns. O filho de Stálin as deixava sempre sujas. Os ingleses não gostavam de ver as latrinas sujas de merda, mesmo que fosse a merda do filho do homem mais poderoso do universo na época. Chamaram-lhe a atenção. Ficou aborrecido. Repetiram as repreensões e o obrigaram a limpar as latrinas. Ele se irritou, vociferou, brigou. Finalmente, pediu uma audiência ao comandante do campo. Queria que ele fosse o árbitro da discussão. Mas o alemão estava imbuído demais de sua importância para discutir sobre merda. O filho de Stálin não pôde suportar a humilhação. Bradando aos céus palavrões russos atrozes, jogou-se contra os fios de alta-tensão que cercavam o campo. Deixou-se cair sobre os fios. Seu corpo, que nunca mais sujaria as latrinas britânicas, ficou ali dependurado.

Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. Tradução de Teresa Bulhões da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 275.
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O romance de Kundera investiga o kitsch, e nesse percurso se ocupa também da merda. A merda como tema, como barreira cultural, como tabu. O que torna esse trecho interessante é o substrato geopolítico por trás da discussão sobre a merda - algo que Zizek já anuncia há tempos ao falar da "ideologia das privadas" e dos três sistemas de construção, o alemão (a merda fica exposta para análise antes de ser eliminada), o francês (a merda cai rapidamente no buraco e fica fora de vista) e o inglês/norte-americano (a merda boia na abundância de água). Mas Kundera oferece outro ponto de vista, não só russo, mas também do Leste Europeu - a merda que escapa, que está para além da privada, a merda que se faz visível. Não está só e Kundera, está em Bohumil Hrabal, na cena de Uma solidão ruidosa em que Mancinka mergulha suas fitas na merda sem perceber, e passa a girar e girar no salão, fazendo de si própria uma espécie de chafariz de merda. 

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