segunda-feira, 5 de setembro de 2011

José

Na sua autobiografia, Elias Canetti, o autor de Auto de fé, conta como no restaurante Aschinger de Berlim ele se encontrava com Isaac Bábel para discutir a Neue Sachlichkeit, a nova objetividade. Porém o mais curioso era que eles estavam menos interessados em comer e beber do que em imaginar quem eram as pessoas em torno. Tentavam entender e descobrir os mistérios dessas pessoas - todos abrigam segredos e mistérios em sua mente. Bábel ensinou Canetti a olhar insaciavelmente as pessoas, a entendê-las sem julgar e condenar. Bábel dizia que se tratava da Neue Sachlichkeit, a nova sensibilidade. (Em algum lugar José já escreveu sobre isso, mas não lembra quando e onde).
Esse recurso criativo foi muito bem usado por Amos Oz, no seu livro Rimas da vida e da morte, em que o narrador, enquanto aguarda uma reunião que se prenuncia tediosa, começa a imaginar em detalhes a vida, os destinos das pessoas à sua volta, a quem atribui nomes, relacionamentos, vicissitudes, alegrias, amores e dissabores. E essas pessoas imaginárias tornam-se os personagens principais do livro. Teria Amos Oz se inspirado nos relatos autobiográficos de Canetti? A melhor inspiração do escritor é sempre encontrada nos livros.

Rubem Fonseca. José. Nova Fronteira, 2011, p. 49-50.
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1) Em primeiro lugar, essa insistência tão produtiva de Rubem Fonseca com Isaac Bábel: mesmo depois do excelente Vastas emoções e pensamentos imperfeitos - um romance que é uma glosa da vida de Bábel -, muitos anos depois do romance ainda aparecem notas esparsas, indícios de que esse fantasma ainda não foi embora, de que ainda há em Bábel um procedimento produtivo de observação literária do mundo.
2) É curiosa a aproximação com Amós Oz: faltou o nexo que liga o livro recente de Oz ao cenário do encontro de Bábel e Canetti, faltou uma indicação de que Oz tenha de fato lido Canetti. O tema da ficcionalização do mundo através do olhar do escritor é, de resto, abundante: Vila-Matas afirma, em París no se acaba nunca, que essa era sua principal atividade em seus anos de Paris. Como não era ainda um escritor de fato, sentava nos cafés [vestido de preto, como Beckett] e observava o movimento das ruas, exatamente como aprendeu naquele livro de Perec, Tentative d'épuisement d'un lieu parisien.
3) Mesmo que um pouco sufocado pela quantidade de obras que publicou, Umberto Eco deixou pelo menos uma obra irrepreensível em sua concisão e criatividade: Seis passeios pelos bosques da ficção. Ele reserva algumas palavras para esse livro de Perec [Tentativa de esgotar um local parisiense], escrito a partir da observação de "tudo o que havia acontecido" na place Saint-Sulpice entre 18 e 20 de outubro de 1974 [justamente a época em que Vila-Matas viveu em Paris]. Eco afirma que Perec buscava "a totalidade da vida cotidiana" em sua impossibilidade irredutível, mostrando o caráter alucinatório de nossa vivência com o tempo.

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