segunda-feira, 7 de março de 2011

Gerenciando dejetos

Na caixa de comentários do dia 28 de fevereiro, foi levantada a possibilidade de ler Kafka a partir do gerenciamento de dejetos - uma leitura sistemática de Kafka que levasse em conta toda essa dimensão do resto, do trapo, do excremento e de tudo aquilo que sobre, que excede. Como na história do homem que transporta as ruínas de uma casa de um lado para o outro, terminando ao relento; como na história do café da manhã formado das sobras de outros cafés da manhã. Há sempre um animal que administra os restos de uma presa, os escombros de uma toca, o entulho de algum túnel. Há sempre um viajante que afirma não precisar de qualquer provisão, há sempre um objeto escondido. Uma nota de O mal-estar na civilização, de Freud, apresenta a questão de forma bastante ilustrativa:

A retração dos estímulos olfativos parece consequência do afastamento do ser humano da terra, da decisão de andar ereto, que fez os genitais até então escondidos ficarem visíveis e necessitados de proteção, despertando assim o pudor. No começo do decisivo processo de civilização estaria, portanto, a adoção da postura ereta pelo homem. O encadeamento parte daí, através da depreciação dos estímulos olfativos e do isolamento da menstruação, até a preponderância dos estímulos visuais, a visibilidade que obtêm os órgãos genitais, chegando à continuidade da excitação sexual, à fundação da família, e com isso ao limiar da cultura humana.
Também é inequívoca a presença de um fator social no esforço cultural pela limpeza, que acha uma justificação posterior em considerações higiênicas, mas já se manifestava antes delas. O impulso à limpeza vem do afã para eliminar os excrementos, que se tornaram desagradáveis à percepção sensorial. Sabemos que é diferente com os bebês. Os excrementos não despertam neles aversão; parecem-lhes valiosos, uma parte que se desprendeu do seu próprio corpo. Nisso a educação intervém com particular energia, apressando o estágio seguinte do desenvolvimento, que deve tornar os excrementos sem valor, repugnantes, nojentos e condenáveis. Tal inversão de valor não seria posível, caso essas substâncias expelidas do corpo não fossem condenadas, por seus fortes odores, a partilhar o destino reservado aos estímulos olfativos depois que o ser humano adotou a postura ereta. Portanto, o erotismo anal sucumbe primeiramente à "repressão orgânica", que abriu o caminho para a cultura. O fator social, que cuida da posterior transformação do erotismo anal, mostra-se no fato de que, não obstante todos os progressos evolutivos do ser humano, dificilmente ele acha repulsivo o cheiro de suas próprias fezes, apenas o daquelas de outras pessoas. Quem é sujo, isto é, quem não esconde os próprios excrementos, ofende o outro, não demonstra respeito por ele, o que também é confirmado pelos mais fortes e mais usuais xingamentos. Pois seria incompreensível o fato de o homem utilizar o nome do seu mais fiel amigo no reino animal como termo de insulto, se o cachorro não provocasse o desprezo por duas características: ser um animal de olfato, que não tem horror aos excrementos, e não se envergonhar de suas funções sexuais.


Sigmund Freud. Obras completas, volume 18. Tradução de Paulo César de Souza (Companhia das Letras). 2010. p. 62-63.

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