sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A Rússia e o demônio

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Mikhail Bulgakov era médico, e serviu no exército como médico, antes da Revolução de 1917. Outros que serviram em combate como médicos: Nietzsche, Louis Aragon, André Breton, Tchekhov. Ao longo da década de 1920 e 1930, Bulgakov enfrentou muitos problemas para publicar seus textos e arranjar emprego. Em 1929, Bulgakov pediu ajuda a Górki na tentativa de obter autorização para viajar ao exterior em busca de trabalho. “Tudo me foi proibido”, escreveu Bulgakov. “Estou na miséria, acossado, em completa solidão”. No ano seguinte, Bulgakov escreveu uma longa carta a Stálin, solicitando um emprego, pedindo clemência, desculpando-se por existir, por escrever as coisas que escrevia, por não ser suficiente ao regime, à nação. Bulgakov, como a grande maioria dos escritores russos da época, nutria sentimentos ambíguos com relação a Stálin – o grande líder, o restaurador da nação, era também fonte de medo e insegurança (por vezes de terror). O sentimento do dever e a exaltação do auto-sacrifício se misturam ao instinto de sobrevivência, à autocomiseração, ao desamparo. Um dia, o telefone tocou. Disseram a Bulgakov que Stálin queria lhe falar. Ele desligou, pensando que era um trote (um trótski). Ligaram novamente, Bulgakov acreditou e, como num sonho, conversou com o Chefe. Seu emprego no Teatro estava garantido, a carta surtira efeito. Ao fim de oito anos nesse cargo, contudo, quase vinte trabalhos de Bulgakov – principalmente peças – foram recusados. Ele demorou a perceber que o cargo servia como mordaça e coleira, e não como um voto de confiança. Chegou a escrever uma peça sobre a vida de Stálin, colocando o grande líder como personagem, no centro do palco, representando sua ascensão vitoriosa, suas origens. Toda a trupe preparada, figurinos e cenários nos ajustes finais, o autor animado com a tão aguardada volta por cima e, de repente, eis que chega a notícia: Stálin havia vetado o projeto. Considerou um absurdo a representação de sua figura de forma tão heróica. Bulgakov, depois disso, adoeceu. Adoeceu dos nervos, adoeceu do corpo. Gastou suas últimas energias revisando O mestre e Margarida, ditando mudanças e ajustes para sua esposa. Mesmo sabendo que não teria (tão cedo) chances de publicação, Bulgakov, mesmo morrendo, seguiu com sua história da tomada da Rússia pelo demônio.

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