sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Prazer do fato, prazer do texto


Dizem que o crítico é aquele que não perde o gosto pela literatura, que não perde de vista o jogo com a literatura, ou seja, a dança da montagem e da combinação (a esquiva, o risco de morte da tauromaquia). Aquele que registra sua biografia nos textos que lê. Aquele que procura o texto onde ele não está, ou está pela metade, tropeçando. É um movimento um pouco esquizofrênico, delirante (que sai da lira, sai do sulco, do trilho, da trilha), porque está sempre além do texto, buscando dados, detalhes, elementos (fatos), ao mesmo tempo em que se cola a ele, ao texto, investigando suas comissuras, na esperança da grande descoberta (como a batata no bolso de Leopold Bloom, que Ricardo Piglia faz questão de ler, faz questão de fincar sua bandeira (em O último leitor - que é o crítico, afinal de contas)). Encanta o crítico a descoberta da situação específica na qual Kafka escreveu determinado texto, durante alguma temporada no sanatório, ou no auge de algum romance epistolar (um amor de ficção, como era de seu feitio). Ou saber o ano em que Bolaño trabalhou como vigia noturno num camping (ou como vendedor de bijuterias) e que texto surgiu então, ou qual texto transmite o fato (e se viveu aquilo para ter o que escrever, ou se escreveu para viver novamente). Ou saber do texto que Faulkner escreveu em vinte e poucos dias, trabalhando também como vigia noturno (ou a noite em claro de Fernando Pessoa, escrevendo poemas em pé, usando o tampo de uma cômoda). E imagino que encante o crítico também as repetições vocabulares de Thomas Bernhard e seu estilo entrópico, estafante - ou aquilo que Benjamin chamou de "estilo asmático" de Proust, ou seja, o momento em que o texto captura o corpo e emula suas ondulações (como em Palahniuk, Javier Marías ou Raduan Nassar, para citar exemplos distantes entre si mas próximos quando se trata de "somatizar" a escritura). Que memória é essa, que não se decide entre fato e texto? Não se decide porque não pode, porque é impossível. Essa memória não é minha, mas é feita por mim, costurada por mim.

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