quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

1984

Nos derradeiros meses do século XX, dei um jeito de obter um visto para entrar na Coreia do Norte. Designada por muitos como "o último Estado stalinista do mundo", a Coreia do Norte pode também facilmente ser apontada como o protótipo mundial do Estado stalinista. Fundada sob a proteção de Stálin e Mao e tornada ainda mais hermética e isolada por uma península repartida que, por assim dizer, "trancou-a em si mesma", no final do ano 2000 a República Democrática Popular da Coreia ainda ostentava as características enumeradas a seguir. Em cada edifício público uma gigantesca figura do "Grande Líder" Kim Il Sung, o defunto que ainda detém o cargo de presidente num governo que, por isso, pode ser chamado de necrocracia ou mausolocracia. Crianças marcham em formação para a escola, entoando canções em louvor do mencionado Líder. Fotografias do Líder exibidas obrigatoriamente em todas as casas. Um broche de lapela com as feições do Líder, de uso obrigatório para todos os cidadãos. Alto-falantes e rádios transmitindo continuamente propaganda do Líder e do Partido. Uma sociedade interminavelmente mobilizada para a guerra, com propaganda histérica e intensamente chauvinista e xenofóbica. Proibição total de notícias do exterior e de contato com outros países. Insistência absoluta, em todos os livros e em todas as publicações, sobre uma visão unânime de um passado miserável, um presente laborioso e um futuro radiante. Clima generalizado de escassez e fome, mitigadas apenas por alimentos abomináveis e em quantidades limitadas. Arquitetura suntuosa e opressiva. Contínua ênfase em esportes e exercícios em massa. Total repressão a tudo que se relacione a libido. Jornais sem notícias, lojas sem mercadorias e aeroporto quase sem aviões. Uma vasta rede de túneis no subsolo da capital, ligando diferentes bunkers do partido, da polícia e das Forças Armadas. Obviamente só havia uma palavra para designar tudo isso, e ela era empregada por todos os jornalistas, todos os diplomatas e todos os visitantes estrangeiros. Foi a única vez na minha vida de escritor em que me cansei do termo "orwelliano". Em alguns aspectos, o pesadelo norte-coreano fica aquém da distopia de Orwell. Em alguns aspectos, porém, é infinitamente mais proibitivo.

Christopher Hitchens. A vitória de Orwell, p. 79-80
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Esse livro de Hitchens, lançado esse ano pela Companhia das Letras, é excelente. Sempre limitei Orwell a um número específico de livros e a uma atuação política bem restrita. Mas o caso é que estava enganado por ignorância, e o livro de Hitchens, além de brilhantemente escrito, é informativo e, principalmente, combativo. Ele não esconde sua admiração por Orwell e toma posição numa batalha que engloba várias frentes - da literatura à política, da esquerda à direita, da Europa aos Estados Unidos, não há recanto que Orwell tenha deixado em paz. O interessante é que Hitchens manobra tanto a minúcia do texto quanto a reconstrução histórica. Ou seja, faz uma releitura criteriosa de Orwell (ao mesmo tempo em que faz a leitura também das leituras, aqueles que comentaram Orwell sob as mais variadas reivindicações) e situa seus textos dentro de contingências muito específicas, que misturam a vida pessoal de Orwell com a história política do Ocidente (principalmente em seu contato com o Oriente).

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