terça-feira, 30 de novembro de 2010

Simulações romanescas


No seminário Como viver junto, Roland Barthes analisa os locais de convivência e as comunidades em diferentes momentos da história literária. No caso de A montanha mágica, por exemplo, de Thomas Mann, Barthes põe de lado a história de amor para se dedicar à dinâmica da sociabilidade do sanatório - a forma como a doença se dissemina em uma variedade de signos de troca e de acesso, a recepção de novos doentes, os desligamentos, as mortes. E o mesmo se dá nas prisões, nos monastérios, nos internatos, nas oficinas literárias. Toda literatura ocidental pode ser solicitada a partir da ferramenta do Viver-Junto.
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Barthes apresenta seu curso como "simulações romanescas de alguns espaços cotidianos" - retirando o foco da representação, por exemplo, e transferindo para a simulação, afirmando, mais uma vez, o atravessamento entre literatura e vida, morte e literatura, literatura e doença (uma vez que fala do "romanesco" e do "cotidiano" e das múltiplas intersecções entre as duas esferas).
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O curso de Barthes, proferido em 1977 no Collège de France, é uma experimentação oral, uma festa do dispêndio e do gasto. Não foi pensado para ser livro - por isso o livro que temos hoje é póstumo, descolado do tempo, fragmentado e cifrado, um amontoado enigmático de notas e comentários filológicos (que serviam apenas como baliza para a experimentação oral levada a cabo por Barthes no acontecimento de seu seminário). Como aconteceu com Saussure, Kojève, Sócrates e Bobi Bazlen, o registro ficou por conta de estranhos.
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Barthes, além de inventariar e analisar "simulações romanescas", também simula um romance em seu seminário, um romance sem narrativa, no sentido de Paul Valéry ao dizer que O discurso do método, de Descartes, foi o primeiro romance moderno, ou seja, um romanesco à margem do romance, um romanesco que funda o gênero a partir da estranheza. O sistema de suas notas, organizado em ordem alfabética mas atravessado pela quase-ilegibilidade do conteúdo delas, reproduz uma "maquete" do romanesco, uma cartografia crua do vir-a-ser do romance. Esse significante vazio é preenchido (com tempo e história) a partir da apropriação dos personagens alheios, que Barthes vai posicionando ao longo da exposição: Robinson Crusoe, Hans Castorp, Charlus, os apóstolos. É o Viver-Junto das figuras irreconciliáveis que potencializa as temporalidades no interior da maquete - e essa cacofonia é o material tanto da crítica quanto da ficção.

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