terça-feira, 20 de abril de 2010

Kafka para presidente

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O mercado editorial norte-americano tem um hábito muito interessante: volta e meia aparece uma nova tradução de um mesmo texto. Coetzee, em seu ensaio sobre Kafka presente na coletânea Stranger shores, faz uma análise da tradução feita pelo casal Edwin e Willa Muir. Faz também um cotejo com a tradução mais recente, assinada por Mark Harman. O casal Muir gostava muito de oferecer festas em sua casa de Connecticut, nas quais se reuniam jovens poetas, velhos escritores e emigrados europeus ligados à cultura. Ao contrário de Adorno, que odiava jazz e tudo que dizia respeito ao ambiente norte-americano, o casal Muir construiu uma sólida ponte entre Europa e América. Thomas Mann, na excursão que fez pela América na década de 1950 dando palestras (Philip Roth comenta em algum lugar o tremendo acontecimento que foi para ele ver Mann, ao vivo, em sua Universidade em Chigaco), passou também pela casa dos Muir. Um dia, aproveitando a aglomeração na praça no centro da cidade, por conta das eleições e dos protestos contra a Guerra da Coréia, Edwin e Willa tiveram a ideia de fazer uma placa: Franz Kafka for president. Parecia uma boa ideia de divulgação, afinal de contas – muito provavelmente a edição de O castelo, traduzido por eles, andava um pouco encalhada. Não fosse pelo disparo acidental de um repórter do Connecticut Post nunca compartilharíamos esse ato tão jocoso.

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Nada mais kafkiano do que Kafka transformado em presidente dos Estados Unidos da América. Kafka como um dos líderes do kibutz dos ratos. No pescoço um relicário com a efígie de Josephine. Dono da tradição oral de um punhado de nômades no deserto, mudos e empoeirados. Estão lá: Beckett, Paul Celan, Walser e Coetzee, recém-incorporado – é o dia de sua iniciação. Os outros raspam sua cabeça e o deixam sob o sol durante três dias. As palavras que Coetzee pronuncia durante os delírios são anotadas e o papel fica embaixo de uma pedra durante sete meses. Alguns dizem setenta. Esse papel é o que chamamos tradição.

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