sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Ciências Morais, Martin Kohan

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A cena mais forte é, sem dúvida, a do estupro sofrido pela protagonista María Teresa dentro do banheiro masculino, no Colégio Nacional, em Buenos Aires. Impressiona porque é abrupto, e quebra o ritmo lento da narrativa até aquele ponto. Ciências morais é um livro lento, que constrói a história aos poucos, emulando a rotina enfadonha da inspetora María Teresa. O curioso e irônico da história é que o inspetor-chefe, responsável pelo estupro, o realiza com o dedo médio, e não com o instrumento que imaginaríamos para a cena. Em passagem anterior, quando o inspetor-chefe leva María Teresa para tomar um café nas proximidades do colégio, ela faz menção ao valoroso trabalho que ele teria realizado pela pátria, anos antes - Ciências morais se passa em 1982, e acompanha as últimas palavras da Guerra das Malvinas. Ou seja, o inspetor-chefe do Colégio Nacional foi torturador durante a ditadura - apenas não fica claro se a impotência é decorrência dessa atividade (como um fantasma psicossomático que Kohan fotografa em ação) ou se já estava lá antes, como um pré-requisito (como uma calúnia coletiva empregada por Kohan).
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É um livro sobre a ditadura, mas um livro sobre a ditadura completamente diferente de A história do pranto, de Alan Pauls, por exemplo, no qual a narrativa é oscilante e internalizada - acompanhamos os fatos históricos mais pelas gravuras e revistinhas do menino que era o narrador do que pelos regulamentos da biopolítica educacional portenha, mostrados por Kohan. É uma ditadura da distância, enquanto a ditadura de Roberto Bolaño, por exemplo, é uma ditadura do contato. O contato, quando acontece em Kohan, é desproporcional, hediondo, absurdo. O dedo médio guia a história do contato reprimido em Ciências morais: o livro começa com a inspetora María Teresa observando o dedo médio da mão de um menino que se demora demais no ombro da menina à sua frente - os estudantes estão em formação, e é preciso assegurar a distância a partir de um contato que é regulamentado. Páginas e páginas se vão com essa fantasia da inspetora: estariam os meninos se aproximando demais das meninas? Por fim, o inspetor-chefe (autoridade máxima sobre o regulamento da distância) utiliza seu dedo em María Teresa, entorpecendo toda fantasia sobre o contato.
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