segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Animais II

*
*
Alguns desdobramentos possíveis dentro da articulação do homem com sua animalidade, sem pretensão de resposta, até porque as hipóteses, como se verá, são por vezes contraditórias.

*****************************
1) O Holocausto: humanos subjugados por um Estado totalitário (o nacional-socialismo como uma máquina antropológica muito específica em sua política racial e biológica (o alemão é a terra e o sangue)), exterminados em matadouros - e a analogia talvez não seria com gado, como queria Paul Singer e Elizabeth Costello, mas com uma infestação de insetos: baratas, cupins, formigas. Está no termo usado por Hitler - Ungeziefer - que Ricardo Piglia observa, em Respiração artificial, ser o mesmo utilizado por Kafka para denominar o inseto no qual Gregor Samsa havia se transformado.

*****************************

2) A categoria do inumano e toda a discussão sobre as próteses teletecnológicas, implantes cibernéticos e enxertos robóticos sobre o corpo, grande parte com fins terapêuticos ou de manutenção do corpo - ou seja, biopolítica, intervenção e controle sobre os corpos. Ou ainda: expandir a produtividade do corpo, gerenciar sua potencialidade com maior eficácia. A biopolítica se apropria, portanto, da indistinção de limites entre humano e inumano - indistinção que não foi devidamente absorvida na animalidade.

*****************************

3) O Juízo Final: quando o homem, no paraíso, senta ao lado do leão e do cordeiro, suplanta a morte e abraça uma ignorância completa e eterna - Agamben inicia seu livro com uma imagem encontrada em uma Bíblia hebraica do século XIII, que mostra os justos salvos em um banquete, todos portando magníficas cabeças animais. O fim da história leva a uma reconciliação do homem com sua animalidade, diz Agamben.

*****************************

4) Há o sacrifício do filho Isaque pelo Pai Abraão - filho que é imediatamente substituído pelo cordeiro assim que o teatro se realiza, no momento mesmo que se finaliza. Há a transfiguração de Cristo no alto do monte das Oliveiras, cuja luz cegou os apóstolos - é possível que Cristo tenha ali adquirido feições animais? Cristo é o Cordeiro de Deus, aquele que se oferece como sacrifício, que derrama o próprio sangue etc., para que o povo nunca mais precise fazer sacrifícios materiais, ou seja, efetivamente cortar a garganta de animais (o bode expiatório, que era abandonado no deserto levando os pecados dos israelitas). O fim da história leva a uma reconciliação do homem com sua animalidade, diz Jesus Cristo.

*****************************
5) Alcança-se a animalidade no extremo da passividade (o prisioneiro que se submete como uma ovelha que vai ao sacrifício) e no extremo da atividade (o soldado que se empapa no sangue durante as execuções, como uma besta). Um homem de 220 quilos pastando McDonald's e Burger King em frente à TV, uma "tia" de creche que queima o tornozelo de uma criança com a ponta de um cigarro aceso.

*****************************

6) A atividade política da contemporaneidade, segundo Agamben, é a profanação. Recolocar em uso aquilo que foi separado, coberto de infâmia, retirado da ordem comum dos homens. O bode expiatório, por exemplo, está separado - não pode ser morto, não pode ser reintegrado. Havia uma cidade dos condenados, no reino de Israel, para onde os transgressores podiam fugir da vingança dos familiares de suas vítimas. Zona de indeterminação e suspensão de direitos - o homem sem natureza específica, arrojado na franja de um hiato, como a França nos dias posteriores à capitulação da Alemanha, a única brecha para a formação de um Estado com outra face (como apresenta Coetzee no Diário de um ano ruim), como Guantánamo.

*

Nenhum comentário:

Postar um comentário